sexta-feira, 30 de outubro de 2009

QUEM DESDENHA QUER COMPRAR

O encontro com o outro provoca a pele, reabre feridas
tudo depende do quanto deixamos ele penetrar
Não é nossa escolha ele querer ficar e nos afetar
mas é de nossa responsabilidade o que fazemos com isso que nos afeta
Mais fácil é reerguer a couraça e vestir máscara da completude
E esconder-se por detrás desta fachada
Pena que assim o único encontro possível é com o seu mais velho amante: Sr. Orgulho
Mais difícil, para haver um encontro verdadeiro,
é abrir a possibilidade de esperar, ali, vulnerável
Aberta, sem disfarces, que ele possa nos alcançar
Espera difícil esta, onde o desafio maior é justamente este:
ouvir e não interpretar, responder e não fechar a questão
Despedir-se sem concluir precipitadamente
conseguir ouvir do outro só no que ele diz
E acreditar...
Sem tornar suas atitudes em prova de múltipla escolha, onde só existem duas opções:
ou cola ou não cola!
É muito difícil admitir-se que se pode perder...
e ficar sem nada, mesmo tendo feito tudo...
e que por algum motivo que eu posso nunca vir a saber, o outro não me quis
Mesmo eu o querendo e tentado
é possível não se conseguir
E a coragem maior é admitir ficar sem...
Sem substituir por qualquer outra coisa
só pra mostrar que não queria mesmo,
e a substituição vem fácil
Mas, admitindo que se quer e não se tem,
seja talvez a única maneira de se permitir ser tida
para finalmente realmente vir a ter

A ARTE DE AMAR - Manuel Bandeira

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.


Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.


Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

DE ARIANA PARA DIONÍSIO - Hilda Hilst

I

É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.

Voz e vento apenas

Das coisas do lá fora

E sozinha supor

Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento

Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento

Meu ouvido escutaria

O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.

Porque é melhor sonhar tua rudeza

E sorver reconquista a cada noite

Pensando: amanhã sim, virá.

E o tempo de amanhã será riqueza:

A cada noite, eu Ariana, preparando

Aroma e corpo. E o verso a cada noite

Se fazendo de tua sábia ausência.

II

Porque tu sabes que é de poesia

Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,

Que a teu lado te amando,

Antes de ser mulher sou inteira poeta.

E que o teu corpo existe porque o meu

Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,

É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicante

Quando amanhece e me dizes adeus.

III

A minha Casa é gurdiã do meu corpo

E protetora de todas minhas ardências.

E transmuta em palavra

Paixão e veemência

E minha boca se faz fonte de prata

Ainda que eu grite à Casa que só existo

Para sorver a água da tua boca.

A minha Casa, Dionísio, te lamenta

E manda que eu te pergunte assim de frente:

À uma mulher que canta ensolarada

E que é sonora, múltipla, argonauta

Por que recusas amor e permanência?

IV

Porque te amo

Deverias ao menos te deter

Um instante

Como as pessoas fazem

Quando vêem a petúnia

Ou a chuva de granizo.

Porque te amo

Deveria a teus olhos parecer

Uma outra Ariana

Não essa que te louva

A cada verso

Mas outra

Reverso de sua própria placidez

Escudo e crueldade a cada gesto.

Porque te amo, Dionísio,

é que me faço assim tão simultânea

Madura, adolescente

E porisso talvez

Te aborreças de mim.

(...)

sábado, 24 de outubro de 2009

PEQUENA PRECE

Há momentos na vida no qual precisamos tomar uma decisão
Decisão adormecida por um tempo, que faz ressignificar diversas outras
e reacender sonhos anestesiados, escondidos, no fundo da alma
E que, devagarinho vão despertando e adquirindo uma força tão intensa que por vezes,
dá medo de não contê-las; e delas se apoderarem de nós
Desejos que acreditávamos mortos, esquecidos num canto qualquer
Como se não fizessem mais parte de nós
Não tivessem mais importância
e que não estávamos dando o devido valor
Repentinamente eles vêm à luz
e incomodam, fazem-se ver, pedem direito à voz
O que fazer quando temos certeza de ter encontrado exatamente aquilo que queremos
Mas, por medo de estragar tudo, recuamos
Quando a vida nos questiona acerca de algo que sempre buscamos
E finalmente nos presenteia com aquilo que ansiamos
Há momentos em que você percebe que é necessário investir todas as fichas
Sem contudo atropelar o outro, mas, justamente por considerá-lo
E você percebe finalmente que terá que dar algo antes de ganhar
Espero, de verdade, conseguir cuidar dese presente que a vida me deu
Deus, me ajuda a tratá-lo com todo cuidado e carinho,
Pois o tempo é algo demasiado precioso para ser desperdiçado
E o encantamento é coisa rara de se acontecer
Por isso, não posso ignorá-lo
e seguir vivendo minha vida como se ela fosse a mesma
Já sou uma pessoa diferente só por tê-lo conhecido
E deixado-o tocar-me de um jeito inédito
Preciso reconhecer o quanto estou encantada com o seu jeito de ser
E o quanto ele se encaixa perfeitamente no meu
E me acostumar com a estranha sensação de que o conheço há séculos
E que partilhamos uma intimidade de uma outra ordem
Ao mesmo tempo em que sinto necessário ter cuidado para não ser demasiado precipitada
Deus, me ajuda a transformar essa tormenta em um suave assovio
Que me mantenha na serenidade necessária para não me deixar demasiado insegura
E não me permita perder-me entre meu desejo demasiado intenso e meu medo de perder
Não permita que o orgulho vença a batalha
mas que eu tenha a coragem de ficar em falta para poder ser preenchida
Ajuda-me a ser sincera, e dá-me a coragem necessária para fazer a minha parte
e lutar pelo que eu acredito e almejo
E que eu possa, ao final, colher bons frutos
E, enfim, descansar em paz.

Amém.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

ELOCUBRAÇÕES SOB A LUZ DO LUAR

Calafrio, calor-frio que percorre a espinha
Ao tentar decifrar com palavras o que a experiência ainda não captou por completo
Talvez o Saber do Dia permita, aos poucos, chegar à Sabedoria
Sem esquecer jamais que esta não contempla todos os aspectos
Resta ainda a escuridão da noite
Que sempre se afasta ao ser iluminada pela luz branda da lamparina
Deixando entrever, entre trevas, as
Lágrimas de Diamante
Saberes descabidos durante o reinado do Sol
Tornam-se jogos de sombras, ora assustadoras, ora encantadoras,
mas surreais sob o efeito da Lua
O que de dia se afasta,
causa repúdio e sofrimento
De noite é material para a mais fina companhia
e um convite de retorno ao passado
Lágrimas de Diamantes
Lágrimas de dia, de noite amantes

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O ENCONTRO DO MAR COM A AREIA

"Adeus, adeus, pescador não se esqueça de mim, vou pedir pra ter bom tempo, meu nego, pra não ter temporuim..."

É um momento dramático que quase ninguém vislumbra ese processa continuamente, dia a dia, este que se dá na orla marinha.O mar velho, em sua sabedoria, sabe que é ncessário ir e retornar, a fim de não satisfazer por completo a areia e nesse balanço suave, ele abre seu ritmo próprio e sereno, sabe exatamente até onde irEnsina a própria arte de pescar, onde é preciso paciência, a isca certa e muito, muito silêncio...mas que difícil saber qual a isca para cada tipo de peixe, ainda mais porque o mar, provocativo,esconde o jogo, disfarçando seus tesouros atrás de pedras e corais, de modo que só se pode ver nuances,que iludem, ludibriam e, se não se toma cuidado, se é levado pelo doce balanço e sicilar das ondas e se perde,dissoluto na branca espuma. Por isso, cuidado, pescador, que o mar é mais antigo que teusantepassados, e a sabedoria dele ultrapassa esta beirada da praia e se esconde lá no além - mar. Onde homem nenhum ousou pisar sem por lá ficar,E eram homens de valor, que acreditavam tudo poder na luta contra a natureza (a deles próprios) e terminarammortos, levados pelo doce canto da sereia.Ao trocar a realidade salgada pela ilusão encantadora,abriram mão da própria vida em nome de um amor.Alguns, que foram resgatados, permanecem nesteencantamento, pararam de comer, de trabalhar, de amar,e se deixados sozinhos, jogaram-se de volta no mar.A vida na terra firme não faz mais sentido, porém como não são peixes também não podem ir viver com o motivo de seu enamoramento.Passam as vidas como quemesperam um milagre, olhando o encontro do mar com a areia esperando o dia de eles se misturarem à branca espuma. Sem se dar conta de que na verdade, mar e areia, apesar de sempre juntos, nunca deixam de ser quem são para se tornar o outro.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A CONTINUAÇÃO DA DESCOBERTA

Como é bom poder perceber que não precisamos mesmo dar conta de tudo
Como é bom saber que o universo respira e conspira ao nosso favor quando realmente desejamos algo
Como é bom saber que a espera faz parte do desejar, do buscar
Que ficar parado um pouco não significa desistir, mas dar o tempo necessário...
Como é bom saber que nos é permitido parar, respirar fundo e tomar fôlego antes de prosseguir
Que é permitido uma pausa, um descanso, um alento
Um renovo de forças para os músculos tão cansados
Que é permitido parar à sombra da palmeira para descansar o lombo do sol fatigante
Agora sim, calma, sento-me na cadeira de minha varanda
e observo o céu estrelado
Ativamente, vejo os astros alinharem-se sem que eu tenha controle sobre eles
E me sinto em paz
Pois sei que faço parte disso de algum modo misterioso.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

TUDO JUNTO E MISTURADO

Eu me rejeito
Eu acho que tu me rejeitas
Eu te rejeito
Você me rejeita
Nós nos rejeitamos
Vós vos rejeitais
Eles se rejeitam

Deu pra entender agora?

PORQUE NARCISO ACHA FEIO O QUE NÃO É ESPELHO (ou encantos e desencantos)

Era uma vez um nobre príncipe que até tinha lá seu encanto
Muito solícito e apaixonado, fazia tudo pelas eleitas damas
Até que um dia uma bruxa má, disfarçada de linda donzela seduziu-o e levou-o para as profundezas de seus calabouços
Por ela, ele abandonou seu reino e sua espada
Porém, deste modo, despido, ele perdeu seu encanto, e ela abandonou-o
Sentindo-se traído, o belo varão jurou nunca mais se deixar enganar pelo encanto de outra donzela
Pediu à Feiticeira Branca uma poção que o permitiria encantar as donzelas e deixá-lo imune ao encanto delas
A partir desse dia, seria ele que as seduziria e abandonaria
Vestiu então para sempre uma máscara invisível que o protegia de apaixonar-se e o tornava ainda mais belo e encantador
Várias pretendentes tentaram achar o caminho para o seu coração, mas ele estava obstinado e quanto mais elas se davam, mais inacessível ele se fazia
Queira fazê-las provar uma a uma o amargo sabor da rejeição
Seu encanto ficou famoso em todo o reino
E assim, ano após, donzelas se apresentavam a ele na tentativa de fazê-lo encantar-se por elas
E ele ia guardando em uma cânfora de prata sua coleção de corações despedaçados que foi juntando ao longo dos anos
E todas a noites, ao beber desta água, ia ficando mais encantador
Sabia-o pelo efeito cada vez mais exacerbado que tinha sobre as mulheres
Porém ele mesmo não podia desfrutar de sua própria beleza
Fôra seu único tabu por parte da Feiticeira:
'não deverás nunca tu admirar tua própria imagem,
no dia em que o fizeres, morrerá'
Isso o intrigava e não achava justo não poder admirar-se
Até que um dia, não suportando tal privação, correu até uma fonte e debruçou-se sobre sua imagem
E ali ficou, fixado em seu próprio encantamento.